terça-feira, dezembro 13, 2005

Piros, o Espírito Pagão do Fogo - pt.2

"Cazadores vienen y van, buscando presas por la ciudad; motores rugientes en tempestad llegan a Larco a manifestar, pues es viernes sangriento, pues sus casas dejaro, buscan unas muchachas, están embalados en tragos." Fragil - Avenida Larco


A viagem continou sem problemas aparentes até que finalmente alcançamos o nirvana. Numa intrépida mudança de percurso, chegamos a uma escabrosa estradinha de terra. "Agora começa a parte mística da viagem", alertou nosso guia viajado no assunto. De fato, as portas da percepção estavam sendo abertas. Com The End, do The Doors, servindo de trilha sonora, acabamos por percorrer facilmente esse perverso trajeto cheio de obstáculos e armadilhas. Além disso, a fina chuva que desabava acabou cessando instantaneamente. Para criar um clima ainda mais sereno, nosso guia resolveu contar histórias de desastres e acidentes mortais que ocorreram neste nosso algoz barrento. Até que, após alguns minutos, finalmente conseguimos transpor a estradinha e chegar ao camping.

Antes mesmo de pegarmos viagem, nos foi avisado que o lugar era diferente de tudo que se poderia imaginar. Era uma terra sem lei, mas que possuia uma serenidade comunitária incomum, até utópica. Cheguei a ouvir também que a ordem capitalista não vigorava nessa terra. E em pouco tempo pude constatar sua veracidade.

Após fazermos um rápido tour pelo vilarejo, finalmente chegamos ao nosso recinto de estadia. Antes de tudo, demos uma geral para o chalé ficar um brinco. Também abastecemos a geladeira e definimos os quartos. Após isso, fomos promover a política da boa vizinhança, assim como o Franklin Roosevelt em sua empreitada contra os comunistas comedores de criancinhas.

Foi interessante notar que havia um certo desprendimento material por parte dos habitantes desta terra. Entramos na casa alheia e fomos muito bem recebidos. Para retribuir, convidamo-os a visitar-nos, o que foi aceito prontamente, com a promessa de provermos um carteado de baralho e suco de cevada fermentado.

De volta ao lar temporário, os anfitriões trataram de compor uma cigarrilha de maracujá, que foi devidamente socializada por todos. Alguns recusaram o pedido, enquanto outros aceitaram e abusaram da dose, tendo delírios psico-imaginários. Enquanto isso, sorvíamos alguns goles do mais legítimo scotch whisky (dizem ser envelhecido por três semanas, no máximo) e ouvíamos canções de procedência duvidosa. O carteado não era tão vistoso mas ajudava a entreter a corja de desalinhados.

Aos transeuntes, nossa residência parecia tomada por um bando de bárbaros visigodos. O consumo de folhas de cânhamo era veloz e intenso. O som ao fundo variava entre rock-peruano psicodélico dos anos 70 e rock-mpb intelectual. A jogatina tinha um clima amistoso, mas ainda assim era competitivo, enquanto seus moradores trajavam chinelos de dedo e roupas lascivas. Enfim, o cenário ideal para uma milícia revolucionária anti-direita.

A noite adentrou e nossa fome se intensificou. A sorte nossa é que havíamos feito a rapa no supermercado e tínhamos um formidável estoque de guloseimas para os próximos dias. E, logo de cara, decidimos por crestar algumas carnes e preparar uma churrascada. Todo o material estava em mãos: carvão, álcool, churrasqueira, churrasqueiro e carne. Porém, fomos traídos pelo destino. Para salvar alguma renda, optamos por comprar o carvão mais vagabundo. Além disso, a quantidade de álcool era pequena - referindo-se ao álcool zulu. Conclusão, o fogo não pegou.

Mas ainda restava uma esperança. Como o comércio local já havia fechado, saímos à cata de um novo combustível inflamável. Na casa de nosso amigo parecia que tinha. E lá fomos. Porém, não era uma missão fácil. O ambiente era inóspito e tenebroso, tal qual no jogo Pitfall. Passamos pelos desafios iniciais e quase chegamos ao bendito do álcool, até que meu companheiro foi eletrocultado e, por motivos de segurança, acabamos desistindo da busca.

Sem alternativas aparentes, tivemos que nos virar com pão Pullman com queijo e presunto. Já terminara de traçar meu segundo sanduíche, quando, de repente, nosso colega trocou seu olhar absorto pelo olhar de espanto. Ele apontou para a churrasqueira e nos mandou olhá-la. Assim, pudemos constatar: a fria brasa que fomentava a churrasqueira tornara-se um fogo incandescente e volupioso. Estávamos bem diante de um fenômeno místico-espiritual. Inexplicável é a palavra correta.

De fato, estávamos tão pasmos quanto Ralph Steadman em seu primeiro Kentucky Derby. Não havia explicação terrena para esta questão. Desta forma, eu, com minha enorme sabedoria em questões transcendentais, decidi por reivindicar essa façanha a Piros, o espírito pagão do fogo. Toda sua malemolência, seu gingado característico, estava presente neste ato único. Desde então passamos a glorificar seu poder divino com rituais, que envolviam ingerir substâncias até atingir o nirvana e entoar cânticos litúrgicos, e com a construção de tótens para adoração.

Dessa forma, com o estômago cheio e o espírito idem, fomos divulgar a boa nova. Em tôm messiânico, tratei de escrever algumas mal-traçadas linhas. Outros trataram de alimentar a mente com novas substâncias de redenção. E assim fomos, degustando umas tenras carnes e bebericando uma generosa caipirinha. Após isto, contamos nossas experiências aos nativos - que à primeira vista, pareciam céticos aos nossos relatos. Depois, fomos nos entreter com um insano Texas Hold'em ao estilo Vegas e, assim, voltamos à terra dos libertinos.