Vôo 714 para a Geórgia
Saímos de Bangu lá pelas 4 da manhã. Fomos direto para o hotel, pois no dia seguinte viajaríamos até Fortaleza, para tocar no Ceará Music. O equipamento seguiu quase que direto para o Galeão com o Wilson, que iria providenciar o embarque. Sempre temos problemas com excesso de peso. Independente da lotação do avião, as taxações para esses volumes são sempre dispendiosas e incontornáveis. Não me parece muito lógico. Se o avião está vazio, não me parece justo pagar o mesmo que um excesso dentro de um avião lotado. Mas, regras são regras.
Não foi o caso nesse dia. Com o vôo lotado por causa do feriado, o despachante da TAM disse que a solução seria dividir o equipamento em dois lotes: o primeiro viajaria com a gente; o segundo, 40 minutos depois. Subitamente uma contra-ordem parecia resolver o assunto. Alguém havia autorizado o embarque da carga completa. Da janela do avião observei a enorme quantidade de equipamentos esperando para ser acomodada, quando os passageiros já estavam sentados. Haveria atraso.
Um vôo direto entre Rio e Fortaleza é estimado em pouco mais de três horas. Depois de servido o lanchinho trivial e inconsistente, ouvimos pelos alto-falantes um pronunciamento do comandante, a autoridade máxima a bordo. "Devido ao excesso de carga embarcada no avião, pertencente ao grupo musical que transportamos, seremos obrigados a fazer uma escala em Salvador para reabastecer." Diante da chiadeira, o infeliz prosseguiu. "Obedecendo a ordens de direção da companhia, tivemos de privilegiar alguns dos passageiros em detrimento dos interesses da maioria."
O incômodo já era indisfarçável. Durante o reabastecimento a indignação era geral. Passageiros inconformados com o transtorno protestavam já sem o freio da inibição. Percebi os olhares recriminatórios e os queixumes que chegavam aos meus ouvidos, sem disfarce. O constrangimento foi imenso. Fui alçado à condição de inimigo: havia roubado o direito dos outros e já era visto como persona non grata. Voamos o segundo trecho num clima entre tenso e hostil. Quando pousamos em Fortaleza, com duas horas de atraso que arruinaram o meu ensaio para o festival, me dirigi ao idiota que comandara aquele vôo desastrado para manifestar minha insatisfação com a sua inabilidade e falta de coragem para assumir a responsabilidade de uma situação na qual ele era a maior autoridade.
Num momento em que a população ainda está impactada e traumatizada por um acidente aéreo que ceifou tantas vidas, como aceitar que um piloto levante vôo sem combustível suficiente para chegar ao destino, e mude seu plano em pleno ar? E o que dizer desse mesmo cidadão que, simplesmente, se exime de suas responsabilidades e prefere jogar a culpa em outrem? Santo Deus, como podemos viajar tranqüilos sabendo que nossas vidas podem estar nas mãos de um profissional tão insensível e despreparado?
Fiz esse relato, pois, lendo as entrevistas de Leão após os seguidos insucessos do Corinthians, vi entre os episódios um paralelo. É fácil jogar a culpa nos outros quando não sabemos explicar os motivos do nosso fracasso. Se o Leão continuar achando que os responsáveis pelas derrotas são apenas aqueles que estão em campo, talvez seja melhor ele pedir ao Berezovski uma vaguinha num time qualquer lá da Geórgia. Certamente a Fiel não será tão condescendente* como a TAM. Gaviões não precisam estar no ar para cair.
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Crônica publicada na seção Boleiros da página de esportes do jornal O Estado de S. Paulo do dia 19/10/2006, escrita por Nando Reis.
Nando Reis é vocalista da banda que leva seu nome, compositor, escritor e tricolor, funções exercidas com maestria tão real quanto o vermelho de seus cabelos. Nando Reis escreve ao Estado todas as quintas, e freqüentemente relata, como nós do Epítetos, algum acontecimento que nos tenha feito mudar ou reanalisar nossas perspectivas.
Gostaria de deixar claro que o Epítetos não tem nada contra o Nando Reis, ou a TAM, ou a Geórgia. Não podemos dizer o mesmo sobre Corinthians e Leão.
*Para auxiliar os torcedores corintianos que lêem o Epítetos, colocarei aqui uma definição de dicionário ipsis litteris da palavra condescendente:
adjetivo de dois gêneros
1 que condescende; indulgente, complacente, transigente
2 que não impõe ordem, disciplina; tolerante, flexível
3 Uso: pejorativo.
que não julga segundo as exigências do dever, da consciência, da honra etc.
4 Uso: pejorativo.
que tenta acentuar uma superioridade sua (real ou não), tratando de maneira paternalista outra pessoa; desdenhoso, arrogante.
Não foi o caso nesse dia. Com o vôo lotado por causa do feriado, o despachante da TAM disse que a solução seria dividir o equipamento em dois lotes: o primeiro viajaria com a gente; o segundo, 40 minutos depois. Subitamente uma contra-ordem parecia resolver o assunto. Alguém havia autorizado o embarque da carga completa. Da janela do avião observei a enorme quantidade de equipamentos esperando para ser acomodada, quando os passageiros já estavam sentados. Haveria atraso.
Um vôo direto entre Rio e Fortaleza é estimado em pouco mais de três horas. Depois de servido o lanchinho trivial e inconsistente, ouvimos pelos alto-falantes um pronunciamento do comandante, a autoridade máxima a bordo. "Devido ao excesso de carga embarcada no avião, pertencente ao grupo musical que transportamos, seremos obrigados a fazer uma escala em Salvador para reabastecer." Diante da chiadeira, o infeliz prosseguiu. "Obedecendo a ordens de direção da companhia, tivemos de privilegiar alguns dos passageiros em detrimento dos interesses da maioria."
O incômodo já era indisfarçável. Durante o reabastecimento a indignação era geral. Passageiros inconformados com o transtorno protestavam já sem o freio da inibição. Percebi os olhares recriminatórios e os queixumes que chegavam aos meus ouvidos, sem disfarce. O constrangimento foi imenso. Fui alçado à condição de inimigo: havia roubado o direito dos outros e já era visto como persona non grata. Voamos o segundo trecho num clima entre tenso e hostil. Quando pousamos em Fortaleza, com duas horas de atraso que arruinaram o meu ensaio para o festival, me dirigi ao idiota que comandara aquele vôo desastrado para manifestar minha insatisfação com a sua inabilidade e falta de coragem para assumir a responsabilidade de uma situação na qual ele era a maior autoridade.
Num momento em que a população ainda está impactada e traumatizada por um acidente aéreo que ceifou tantas vidas, como aceitar que um piloto levante vôo sem combustível suficiente para chegar ao destino, e mude seu plano em pleno ar? E o que dizer desse mesmo cidadão que, simplesmente, se exime de suas responsabilidades e prefere jogar a culpa em outrem? Santo Deus, como podemos viajar tranqüilos sabendo que nossas vidas podem estar nas mãos de um profissional tão insensível e despreparado?
Fiz esse relato, pois, lendo as entrevistas de Leão após os seguidos insucessos do Corinthians, vi entre os episódios um paralelo. É fácil jogar a culpa nos outros quando não sabemos explicar os motivos do nosso fracasso. Se o Leão continuar achando que os responsáveis pelas derrotas são apenas aqueles que estão em campo, talvez seja melhor ele pedir ao Berezovski uma vaguinha num time qualquer lá da Geórgia. Certamente a Fiel não será tão condescendente* como a TAM. Gaviões não precisam estar no ar para cair.
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Crônica publicada na seção Boleiros da página de esportes do jornal O Estado de S. Paulo do dia 19/10/2006, escrita por Nando Reis.
Nando Reis é vocalista da banda que leva seu nome, compositor, escritor e tricolor, funções exercidas com maestria tão real quanto o vermelho de seus cabelos. Nando Reis escreve ao Estado todas as quintas, e freqüentemente relata, como nós do Epítetos, algum acontecimento que nos tenha feito mudar ou reanalisar nossas perspectivas.
Gostaria de deixar claro que o Epítetos não tem nada contra o Nando Reis, ou a TAM, ou a Geórgia. Não podemos dizer o mesmo sobre Corinthians e Leão.
*Para auxiliar os torcedores corintianos que lêem o Epítetos, colocarei aqui uma definição de dicionário ipsis litteris da palavra condescendente:
adjetivo de dois gêneros
1 que condescende; indulgente, complacente, transigente
2 que não impõe ordem, disciplina; tolerante, flexível
3 Uso: pejorativo.
que não julga segundo as exigências do dever, da consciência, da honra etc.
4 Uso: pejorativo.
que tenta acentuar uma superioridade sua (real ou não), tratando de maneira paternalista outra pessoa; desdenhoso, arrogante.
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